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Introdução
Nas muitas tentativas de valorizar o homem rural da bacia do Rio da Prata chamado gaúcho, seus simpatizantes cometem equívocos no que tange a seus costumes musicais. Pelo fato de ser comum a milonga na arte gaúcha contemporânea, podemos encontrar, em filmes e escritos, esse gênero musical adornando episódios históricos onde era alheio. Jamais se poderia ouvir uma milonga durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), por exemplo, dado que está só pode ser evidenciada a partir de 1870.
A lírica da campina americana inicia com a história da colonização depois do Descobrimento por espanhóis e portugueses. Desta forma somos forçados a incluir nela a influência de árabes e berberes que dominaram a Península Ibérica por séculos, antes mesmo da definição desses dois países.
Mais remotamente teríamos gregos e romanos, na consequência da cultura de onde descendemos. De qualquer forma, embora os gregos tivessem desenvolvido instrumentos musicais como a lira, com suas cordas golpeando diferentes divisões matemáticas dos sons, as expressões musicais mais comuns dos povos primitivos foram sempre aquelas conseguidas por meio de sopro ou percussão.
Por sua simplicidade, flautas e tambores sempre foram usados nas sociedades primevas, fato observado também entre os ameríndios.
Na época do descobrimento muitas vezes os próprios príncipes da Europa civilizada eram analfabetos e os registros escritos eram reduzidos, dificultando pesquisas mais minuciosas do processo lírico antes do Renascimento. Tudo começa, então, com os clássicos, onde a música realmente alcançou patamares muito mais elevados, e toda a músicalidade contemporânea está influenciada por eles.
Na América os índios e mestiços dos campos da Banda Oriental ficaram no meio das guerras entre Portugal e Espanha. Sem interesses políticos ou compromissos com as cores dos dois países em disputa, eventualmente, os “gaudérios” – de gáudio e gaudere, em latim: folgar – podiam servir tropas espanholas como portuguesas, por período que representava um lapso da vida folgazã. No fim do compromisso eventual, voltavam aos interesses particulares de sua vida inerte. Augusto Meyer, em “Prosa dos Pagos”, diz sobre eles: “Esses homens sem lei nem rei, que ‘moravam na sua camisa, debaixo do seu chapéu’, mantendo-se num equilíbrio instável entre o índio e o branco foram aproveitados muitas vezes nas arreadas e na guerra como campeiros ou bombeiros, mas os seus entendimentos com as tropas regulares de espanhóis ou portugueses eram um ajuste condicionado às obrigações momentâneas do serviço combinado entre as partes, e representavam uma espécie de parêntese na sua vida habitual de gaudérios.”
Dizia também Calixto Bustamante Carlos, “Concolorcorvo” de pseudônimo: “Estes, são moços nascidos em Montevidéu e nos vizinhos pagos. Má camisa e pior vestido, procuram encobrir com um ou dois ponchos, de que fazem cama com baixeiros do cavalo, servindo-se de travesseiro a sela. Se munem de uma ‘guitarrita’ que aprendem a tocar muito mal e a cantar destoadamente várias coplas que estropiam, e muitas que sacam de sua cabeça, que regularmente giram sobre amores. Andam ao seu alvitro por toda a campanha e com notável complacência daqueles semibárbaros colonos, comem a sua custa e passam as semanas inteiras estendidos sobre um couro, cantando e tocando”.