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Introdução
A meia-vida das coisas
Desde a varanda enxergo na paisagem várias sedes de fazendas conhecidas. Depois de adulto, seu arvoredo conserva as mesmas copas antigas, com seu eterno desenho. Cartão postal na distância que esconde detalhes corroídos pelo tempo, cada uma delas me traz uma lembrança de um período determinado e uma pena interior pela memória de coisas que ficaram para trás.
A distância é mentirosa. Sem necessidade de veículo, viajo no tempo e no espaço, até o pára-peito dessas casas, para encontrar a verdade. Numa varredura com um contador Geiger, o lugar responde com emoções diferentes, conforme o grau de desgaste da emoção original do destino para o qual serviu, ou serve. Aplico a metáfora do carbono 14; cada lugar mostra uma “meia-vida” que se desgasta com o tempo; cada lugar tem um tempo culminante de glória, alegria, felicidade, euforia, realização, progresso.
A estância Sarandí, do Quido e da Potoca, que conheci em meus primeiros anos de viajar a cavalo, vivia então a distinção de inaugurar o sistema de inseminação artificial em ovinos. O inseminador, Carioca, assumia o clima de satisfação do casal emergente cantando canções de Lupicínio Rodrigues nos serões onde compareciam os vizinhos do campo. Entre estes, meu pai e seu pequeno filho aprendendo a conhecer pessoas e coisas, diferentes da sua humilde estância Retiro.
O Retiro também teve sua época dourada depois do Colmar assumir a gerência e modificar a arquitetura do lugar - época em que as plantas das suas instalações foram expostas nas vitrines das casas de comércio da cidade, no marketing dos construtores -, casas e galpões novos, de alvenaria e caiados de branco, pintados de cores nas roupas das visitas vindas da cidade para as grandes marcações de terneiros dos anos 1960 e 1970.
A estância do Bueiro, de Moacir Coccaro Rodrigues e sua esposa argentina, Norma, foi a primeira que conheci onde morava uma família, num bangalô de tábuas muito bem construído quase junto à entrada da estância Retiro. Uma rápida amostra de sonho e poesia logo depois de seu casamento, na criação dos filhos pequenos.
A velha estância Triunfo, do meu finado tio Telmo, reformada pelo meu primo Ênio Duarte, também teve seu momento depois que este casou, levando para lá a esposa Beatriz Botafogo.
A cidade não foge à análise. Condomínios inteiros, tendo em certas épocas habitados seus apartamentos por pessoas com afinidade, mantiveram períodos de grande alegria, amortecidos no tempo e desgastados de ausências e separações. Lembro também de algumas casas especialmente construídas para determinado momento de certas famílias. Desenho moderno, fachada de capa de revista e divisões estudadas; áreas de lazer; jardins de inverno; grandes janelões panorâmicos; salas grandes, para reuniões de grande número de convidados nas festas de aniversário e fins de ano; jardins orientados por paisagistas; garagens para vários carros; áreas de serviço habilmente ocultas dos olhares curiosos, que às vezes chegavam às raias da inveja. Todas tiveram razão, não nos pais, mas nos filhos do casal. Geralmente se tratava de criar o ambiente onde apresentá-los emoldurados por uma aura de sonho e fantasia. Lindos pacotes de presente amarrados com laços de fitas, fazendo das filhas casadouras alvo preferido de rapazes de melhor família e de maior fortuna. Assim, os filhos, dos 15 aos 20 anos, movimentam a vida dos pais: cobram os bens amealhados, desgastam sua poupança martelando os “porquinhos”, exigentes de resultados. E, ainda que real tenham sido esses períodos de glória, em sonho todos se transformaram com o tempo inexorável.
Tudo passa; todos passam.
Diferente “viver para fora” e “viver para dentro”. Vive para fora quem expande socialmente, irradiando o sucesso da família numa aura que se desprende de suas casas, para onde converge o “público” assistente. Vive para dentro quem tem necessidade de ocultar o fracasso; quando, talvez, “se esconda” em um apartamento quarto-e-sala a comer de vianda.
Diz-se de quem mora no interior que vive para fora. Hoje, depois de morar na cidade “vivendo pra dentro”, moro novamente no interior e vivo realmente “para fora”.